segunda-feira, 18 de abril de 2011

[Entrevista] Jorge de Angélica: “A música da Rua Nova está para Feira como o sal está para a comida”

Por Paulo Robério Castro Rabelo

O reggae é paz e muito mais!

Jorge de Angélica1
Primeiro cantor de reggae em Feira de Santana e na Bahia (dizem alguns que talvez no Brasil), Jorge de Angélica, 52 anos completados no último dia 07, teve contato com a música jamaicana surgida no final da década de 1960 ainda no começo dos anos 70, através de uma emissora de rádio de Feira. Foi paixão logo à primeira audição. “Ouvi uma música de um cara do qual nunca mais ouvi falar, um cara chamado Bob Uc”, ou algo de sonoridade parecida.
Para quem nasceu cantando (“o pessoal é que pensou que aquilo fosse um choro”, costuma brincar) e foi criado nas casas de candomblé da Rua Nova, ouvindo e tocando desde os 10 anos de idade os instrumentos de percussão nas festas e rituais dos terreiros, incorporar aquela batida foi muito fácil. O negócio pegou-lhe como um visgo de jaca, do qual nunca fez o menor esforço para se livrar. Antes dos 10 anos Jorge já tirava som do que estivesse por perto: bacia de lavar roupas, mesa, tamborete, latas de querosene, latas de óleo de salada e o que mais ecoasse. Hábito do qual também não se livrara. Como o seu pai, João Amaral (filho de Xangô), que era ogã de um terreiro da Rua Nova, e sua mãe, a dona Angélica (filha do Tempo), também frequentava candomblés desde pequena, a musicalidade de Jorge, que ele também atribui a seus ancestrais, aflorou muito cedo. “Primeiramente vem de Deus, de Jesus, pois é ele quem distribui os dons”, esclarece.
Mesmo sendo “chamado de louco, ladrão e maconheiro”, como ainda se lembra, sem rancor, vez ou outra alguém lhe dava oportunidade de mostrar o talento percussivo nos sambões que aconteciam nas barracas de cerveja, típicas das festas de largo que aconteciam na Matriz, na Kalilândia e no Cruzeiro. “Eu devia ter uns 14 pra 15 anos quando o pessoal dos sambões, que já me via tocar nos terreiros, dava a chance de batucar com eles. Lembro que eram músicas de Martinho da Vila, Jair Rodrigues e quem mais estivesse em evidência”.
Enquanto isso a menina de seus olhos continuava sendo regada, embora suas apresentações se restringissem a uma pequena plateia composta por sua “galera” da Rua Nova e um ou outro apaixonado pelo ritmo que ainda estava sendo descoberto em Feira de Santana.
Muito cedo, “com uns 15 anos”, Jorge também aprende a expressar (em palavras e ritmo) questões que lhe são muito próximas e fazem parte do cotidiano seu e da sua irmandade de cor e outras que ultrapassam temas como a mera tonalidade da pele. O compositor é taxativo ao admitir que a tomada de consciência de pertencimento à cultura de matriz africana (e uma atitude afirmativa, positiva) e as injustiças históricas vividas pelo povo negro é um dos temas das músicas que compõe. “O reggae ajudou, está ajudando e vai sempre ajudar. Nas músicas de reggae, do verdadeiro reggae, você vai encontrar palavras de direitos iguais e de justiça, além de um unguento que traz alívio e cura para as feridas. Essa música é um instrumento que ajuda o indivíduo a refletir acerca do mundo e de si mesmo. Reggae, para mim, também significa paz, harmonia, amor, insistência e perseverança”.
Agitador cultural de sua comunidade, pelo ido ano de 1976 Jorge teve a ideia de montar o primeiro afoxé da Rua Nova, o “Filhos da África”, tendo como parceiros “Nezinho” e Marivaldo. O trio juntou “uma rapaziada, também autodidata, que curtia música e tinha dom para ela”, à qual ensinaram a tocar instrumentos de percussão para desfilarem nas micaretas, tocando e cantando as canções compostas por Jorge de Angélica. “Dois ou três anos depois, por uma questão da qual não me lembro, pediram que mudássemos o nome do afoxé. Então rebatizamos o afoxé de Zimbábue”, que em 1985 se tornaria o afoxé que conhecemos como “Pomba de Malê”. A primeira canção composta por Jorge para o afoxé foi “Bahia Negra”, depois vieram outros sucessos, entre os quais se destaca “Cobra Coral”.

Andar com fé e “Gana” nunca lhe falhou

Jorge de Angélica2
“Mais ou menos em 1986”, lembra-se, “uma mãe de santo do Cruzeiro, a mãe Helena [já falecida], me falou: ‘Jorge, você está sempre aqui em minha casa, tocando nas festas que eu faço… quero lhe dar um presente: Sei que você quer ter uma banda, então, arranje os músicos que eu dou os instrumentos’”.
Com o “pé no mundo” atrás dos músicos com os quais desejava montar sua primeira banda. Ele recorda que o mais difícil foi conseguir trazer para seu projeto Tonho Dionorina, músico de formação clássica, estudioso da obra de Villa-Lobos que na época dava aulas de música no Sesi. Mas nada disso intimidou o guerreiro. “Fui ao Sesi convidar Dionorina para montar uma banda. Mas havia lá uma pessoa de sua relação que o advertia: ‘Rapaz, você, um músico reconhecido vai se meter com esse cara da Rua Nova? Olha lá, veja bem, esse cara é um maluco’”, recorda.
Voltando desanimado à casa de mãe Helena, ele lhe falava: “Tá difícil, tá difícil”, ao que a sábia senhora respondia calmamente: “Rapaz, tenha fé em Deus e corra atrás. Enquanto eu estiver viva, estarei aqui pra lhe ajudar”. Sempre com Jesus Cristo à sua frente (“primeiramente”, como sempre diz o músico) e reanimado, volta à procura do filho de dona Honorina. Tonho, que já conhecia o trabalho do filho de dona Angélica na Rua Nova e no Pomba de Malê, aposta pra “ver qual é de mesmo”. Assim nasce a primeira banda de reggae de Feira de Santana e da Bahia, batizada de “Gana”, que quer dizer “vontade, apetite, desejo e ambição de conseguir, de vencer; além, é claro, de ser uma referência à República do Gana, na África”, explica o seu idealizador.
A formação de “Gana” contava com Nilton Rasta (percussão), Manoel Rasta (“que hoje está fazendo música e morando na Bélgica”), Nunes Natureza, três moças que faziam o backing vocal “e a gente chamava de ‘as doces’”, Paulo Monge (guitarra harmônica), Célio Túlio (guitarra) além de Jorge de Angélica e Tonho Dionorina, que, além de dividir o vocal com Jorge, também tocava vários instrumentos de corda.
O músico e compositor de afoxés e reggae Nunes Natureza, que hoje tem uma pequena banca onde vende doces, cigarros e jornais, na Rua Marechal Deodoro, diz que, “com certeza, o Jorge é o primeiro cantor de reggae da Bahia… desconfio que até do Brasil. Até a formação da Gana a gente não tinha conhecimento de uma banda reggae no Brasil. Logo depois é que a gente ouviu falar de uma banda apadrinhada por Gilberto Gil, composta de músicos das Guianas. Seguramente, Jorge é o mais ilustre representante do reggae no Brasil”, completa Natureza.
Nas apresentações que começaram a fazer em Feira e outras cidades do interior da Bahia, Gana tocava basicamente canções compostas por Jorge. “Numa dessas viagens, acho que para Vitória da Conquista, onde a gente ia fazer uns shows, ficamos ‘embargados’ numa barreira policial. Eu disse: ‘Glória a Deus’, e toda vez que faço isso Ele atende… Daqui a pouco vem um veículo cheio de gente importante e quem estava ao volante era um juiz de direito, ‘mamado’ àquela altura – era carnaval. Foi uma confusão danada… só sei que com a carteirada do doutor todo mundo foi liberado”.
Quase dois anos depois de formada a Gana, Dionorina se afasta. Capitaneada por Jorge, Gana ainda participou de alguns festivais, mas em pouco tempo se desfaz. A próxima banda formada por Jorge seria a “Guerrilha Radical”. A iniciativa de Jorge de montar uma banda voltada exclusivamente para a música que nasceu na Jamaica no final dos anos 1960, valeu a pena, pois em pouco tempo depois de Gana surgiram outras bandas de reggae no cenário feirense e baiano. “Aqui surgiu a banda Esperança, montada por Gilsam, lá pelo final dos anos 80”, exemplifica.

200 Letras
Jorge estima que suas composições, ao todo, cheguem a 200. Número considerado pequeno para um músico que desde criança sabia que queria viver de e para a música. “Eu compus pouco porque tenho dificuldade para escrever, então as músicas que componho vão nascendo em ‘rascunhos’ que vou armazenando em minha mente e dali mesmo eu tiro o arranjo, a letra e coisa e tal”, revela o músico autodidata, que diz que “o pouco que compus está dando para segurar a onda”.

Da “Sopa de papelão” à Trilogia do Reggae

Jorge de Angélica3
Nada vem fácil para o guerreiro filho de Xangô “e de Jesus, primeiramente”, como faz questão de esclarecer. Se sua primeira banda veio depois de mais de uma década de luta, o primeiro disco de Jorge lhe é dado de presente no dia 6 de abril de 1996, quando já não se gravava mais em LP, um dia antes de completar 37 anos.
“Eu procurei o deputado Zé Neto, que na época ainda não era nem vereador, e lhe pedi ajuda pra gravar meu primeiro disco, pois já havia gente do reggae, cria minha, que falava por aí que eu ‘já era’. Não precisou eu falar muito, ele disse: ‘Faça o orçamento que a gente vê como faz’. Não vacilei. Na mesma tarde eu e um camarada, que fazia a produção dos meus shows, o Paulo Humberto Sérgio, pegamos o lotação canela e fomos bater na porta de uma gravadora que ficava na Maria Quitéria. Quando chegamos à gravadora, dois negões suados e usando chinelos de dedo, a recepcionista nem abriu a porta. Só perguntou o que a gente queria. Falei que era o orçamento de um CD, etc. Acho que pra se livrar logo da gente ela fez lá um cálculo qualquer e me entregou num pedaço de papel. Quando vi aquilo, não acreditei: não chegava a custar nem a metade do que eu imaginava”, lembra.
Ele recorda também que no mesmo instante voltou a bater pernas para a casa de Zé Neto. “Quando ele viu o valor, pegou o telefone, acertou logo a data de gravação e tratou de fazer o cheque pra garantir. Acho que a moça fez uma conta qualquer porque não levou o lance a sério”.
Assim veio à luz “Sopa de Papelão”, com uma faixa que dá nome ao CD, “Gangue perseguindo gangue”, “Bahia negra” e reggae love “Rosa”. Mais alguns anos depois, sempre com luta e perseverança, conseguiu gravar mais dois CDs solo: “Confiança em Deus”, com 14 faixas, e “A luta continua”, com 12.

Trilogia do Reggae
Músico de trabalho marcadamente autoral, Jorge admite que toda a sua trajetória musical solitária de décadas surtiu a metade do efeito que vem surtindo há pouco menos de dois últimos anos, quando somou forças com Dionorina e Gilsam para apenas um show, batizado de Trilogia do Reggae, e que aconteceria “graças à providencial proposta da professora Selma Soares”.
Selma Soares, professora de História e Teoria da Arte na Uefs, à época a que Jorge se refere (2009), era diretora do Centro Universitário de Cultura e Arte , o Cuca. Jorge a procurou pedindo o espaço do teatro de arena do Cuca para um show de reggae. Admiradora do trabalho de Jorge, ela lhe diz: “Gostei muito da ideia, Jorge. Mas, que tal se a gente a ampliasse?” Assim foi proposto a ele uma parceria com dois outros grandes reggaeman, que ele já conhecia do afoxé “Pomba de Malê”: Gilsam e Tonho Dionorina. O encontro, que seria apenas um show, foi batizado de “Trilogia do Reggae”.
Resumo da ópera: Por problemas técnicos o show foi desmarcado em cima da hora e só aconteceu quase um mês depois, em novembro de 2009. Sucesso e reconhecimento de um público bem maior, Trilogia do Reggae superou as expectativas. E a formação feita para um show extrapolou os limites: Nos carnavais de 2010 e 2011 de Salvador “Trilogia do Reggae” teve trio elétrico no principal circuito; assim também aconteceu na Micareta de 2010 e deve repetir-se nesta. Eia!




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